Pecado e arrependimento
Em Yom Kipur, Dia do Arrependimento, além de fazer um balanço do ano que passou e se arrepender dos erros e transgressões cometidas, o homem deve responder perante D-us à pergunta: ‘Que tipo de pessoa eu me tornei?’
Ensina o Talmud que, em Yom Kipur, o homem é perdoado pelas transgressões que cometeu contra D’us, mas não pelos pecados que cometeu contra o próximo. Se alguém prejudicar o outro, de alguma maneira, deve pedir perdão e reparar o erro cometido, pois o Eterno não absolve erros ou ofensas que uma pessoa faz em relação à outra, até que aquele que foi ferido a perdoe. Mas D’us, em sua Infinita Misericórdia, dispõe-Se a perdoar o indivíduo que pecou contra Ele.
De acordo com o judaísmo, pecar contra D’us significa ignorar ou transgredir a Vontade Divina, violando um dos mandamentos da Torá referente a nosso relacionamento com o Rei do Universo. Na Torá, diferentes palavras hebraicas são utilizadas para descrever diferentes tipos de pecado: o termo chet é utilizado quando o pecado é cometido por erro ou por descuido; avon é utilizado quando o pecado é fruto de desejo ou paixão; e pesha, por um ato de rebelião contra o Criador.
O Midrash nos oferece, através de uma linguagem metafórica, um entendimento mais profundo do pecado e de suas conseqüências para o homem ao revelar a resposta dada pela Sabedoria, Profecia, Torá e D’us à pergunta “O que é um pecado?”
À Sabedoria, perguntou-se: “Qual o destino do transgressor?” E a resposta foi: “O mal perseguirá os pecadores” (Provérbios, 13:21).
Para a Sabedoria, o pecado é um ato autodestrutivo. Como, por definição, a Sabedoria é a compreensão do que é verdadeiro, justo e sensato, esta aponta para o fato de que cometer um pecado é, acima de tudo, um ato nocivo e imprudente. Pois, da mesma maneira que há no mundo leis físicas da natureza, também há leis espirituais. Se alguém for pular de um edifício, esteja consciente ou não de seu ato, terá que arcar com as conseqüências da Lei da Gravidade. Da mesma maneira, quem adota um comportamento espiritualmente destrutivo – fazer aquilo que D’us nos ordenou não fazer – comete um ato que vai prejudicá-lo, e não apenas no âmbito espiritual.
A Cabalá nos ensina que no mundo em que vivemos o físico é o reflexo do espiritual. Portanto, uma ação espiritual positiva ou negativa afeta não só a alma, mas também o bem-estar físico do homem. Assim afirma o Rei Salomão, mais sábio de todos os homens, no Livro dos Provérbios: “O mal persegue os pecadores”. A Sabedoria quer ensinar que cada homem cria sua própria realidade. Seu conselho é: “Semeie bondade e colherá bondade; faça o mal e, em algum momento e em algum lugar, este se voltará contra você mesmo”.
À Profecia, perguntou-se: “Qual o destino do transgressor?” E a resposta foi: “A alma que pecar há de morrer” (Ezequiel, 18:20).
Ao responder à pergunta do que é o pecado, a Profecia não nega a definição da Sabedoria, mas a amplia. Ainda que concorde que é um ato autodestrutivo, ensina que é muito mais do que um ato nocivo. Como a visão do futuro de um profeta é, geralmente, melhor do que a de um sábio, este tem uma noção mais clara e profunda do mundo e de sua dinâmica. A Profecia define a vida como uma conexão com D’us, que é, como dizemos em nossas preces, “a Vida de todos os mundos”. E, conseqüentemente, como o pecado é a ruptura da ligação entre o homem e D’us, a Profecia o define como o oposto da vida.
À Torá, perguntou-se: “Qual o destino do transgressor?”. E a resposta foi: “Ele dever trazer um sacrifício, e este será a sua expiação” (Levítico, cap. 5).
A Torá, que abrange a Sabedoria e a Profecia, concorda com ambas, mas as transcende, pois sabe que nenhum judeu deseja desconectar-se de D’us. Entende o pecado como um ato de profunda insensatez. Ensina que um judeu peca porque sua má inclinação, o Ietzer ha-Rá, o leva a acreditar que é tão forte sua ligação com D’us, o cordão espiritual que o liga a Ele, que nenhuma transgressão é capaz de rompê-la. Por isso, ele só transgride a Vontade Divina quando é momentaneamente tomado por um espírito de insensatez que o leva a esquecer que o pecado é um ato nocivo, oposto à vida. Além do mais, ensina a Torá que quando o homem transgride a Vontade de D’us, o faz com a parte de sua alma ligada ao mundo material. Se o homem estivesse constantemente em sintonia com a Centelha Divina que há dentro dele, jamais seria capaz de fazer algo que o desconectasse do Eterno.
E, como a Torá considera o pecado um ato de insanidade temporária e de inconsciência espiritual, apresenta um remédio para tal ato. “Que o homem ofereça um sacrifício ao Eterno”, diz, “e seu pecado será expiado”. Este sacrifício, que visa reparar o cordão espiritual que ata o homem a D’us e que foi rompido quando do pecado, é feito de diferentes formas. Para reparar seu ato e se reaproximar de D’us, o indivíduo deve sacrificar parte de seu dinheiro e destiná-lo à caridade; deve, também, sacrificar parte de seu tempo e usá-lo para rezar, estudar a Torá e ajudar o próximo.
À D’us, perguntou-se: “Qual o destino do transgressor?”. D’us respondeu: “Ele deve fazer Teshuvá; esta será a sua expiação”.
Vimos acima o significado do pecado através da perspectiva da Sabedoria, da Profecia e da Torá. E, D’us? Como Ele define o pecado? D’us é a Fonte de todas as fontes, tudo que há neste mundo Dele provém. A Sabedoria é um dos atributos que Ele emana, a Torá representa Sua Vontade e a Profecia é um dos meios pelos quais se comunica com o homem. Através de Seu atributo de Sabedoria, D’us nos indica que pecar é um ato nocivo que nos prejudica; através de Seus profetas Ele nos transmite que pecar é o oposto da vida; e através de Sua Torá nos ensina que pecar é um ato de profunda insensatez. Mas D’us, que a tudo transcende, oferece uma perspectiva que pertence unicamente a Ele.
Para o Eterno, o pecado é uma oportunidade do homem se elevar e crescer espiritualmente. D’us nos diz que, após transgredir um mandamento, devemos primeiro nos conscientizar de que cometemos um ato nocivo e autodestrutivo, para depois lamentar o fato deste ter interrompido o fluxo de energia vital que Dele emana até nós. Devemos ainda perceber que acabamos por nos tornar escravos de nossas más inclinações e que, ao pecar, cometemos um dano espiritual que deve ser retificado.
No entanto, D’us nos revela que após percorrer este caminho de expiação e perdão, temos a possibilidade de transformar o pecado em oportunidade de uma maior aproximação espiritual a Ele. O judaísmo chama de Teshuvá a este processo de arrependimento por um pecado e seu uso como forma de crescimento espiritual. A palavra é usada com freqüência, especialmente no período entre Rosh Hashaná e Yom Kipur. No entanto, via de regra é traduzida e entendida de maneira incorreta.
Retornando a D’us
Teshuvá, a palavra hebraica para arrependimento, possui três significados diferentes, embora entrelaçados. Primeiro, denota “retorno” – uma volta a D’us e à Sua Vontade. Segundo, significa “virar-se em direção”, ou seja, tomar um rumo diferente e melhor na vida. Terceiro, significa “resposta”, uma reação a um chamado – que significa estar atento à Voz do Eterno. Em Yom Kipur, além de fazer um balanço do ano que passou e de nos arrependermos das transgressões cometidas, devemos responder à pergunta Divina: “Que tipo de pessoa você se tornou”? Como cada homem contém dentro de si uma Centelha Divina, uma ínfima parte de D’us, é justo que o Criador nos desafie, perguntando: “Por que você é apenas um ser humano? E por que o mundo é apenas um mundo?” Em outras palavras, D’us nos pergunta: por que você não almeja ser muito mais do que é, rompendo com suas limitações e falhas? E por que você permite que o mundo continue sendo o que é – repleto de problemas, injustiças e imperfeições – e não procura aperfeiçoá-lo, já que esta é a missão do homem na Terra?
O processo de Teshuvá deve, na verdade, ir além de simplesmente jejuar em Yom Kipur e manifestar a vontade de melhorar no ano que se inicia. Devemos atingir um ponto no qual não nos satisfaz apenar ser “humanos”, tão falíveis e imperfeitos. Isto se aplica a cada um de nós, pois o arrependimento de um único indivíduo é um processo que pode transformar o mundo. De fato, a tradição judaica ensina que o lamento que emana de uma única alma se junta ao lamento do mundo como um todo, para que este último alcance a auto-transformação. Como cada ato de cada um dos indivíduos influencia o mundo, como cada ação ultrapassa o seu contexto imediato, cada um de nós, independentemente de seu nível espiritual, é chamado a superar a si mesmo. Isto significa que mesmo um homem totalmente justo – inclusive alguém como Moshé – não está isento de fazer Teshuvá.
No seu nível mais simples, a Teshuvá, o arrependimento, significa retornar a D’us – isto se traduz por fortalecer nossa fé e nossa prática do judaísmo vivendo de acordo com as leis e o espírito da Torá. Mas, em sua essência, a Teshuvá requer muito mais do que um maior grau de observância religiosa. Requer o empenho e a força de romper com o passado, para assim atingir um nível espiritual mais elevado e poder chegar mais próximo a D´us. E, como o homem, criatura finita, jamais conseguirá alcançar o Criador Infinito, a Teshuvá é um empenho sem fim.
Essa busca infindável do Eterno é poeticamente descrita no “Cântico dos Cânticos”, no versículo que diz “O Rei me introduziu na Suas câmaras” (1:14). Estar próximo a D’us não é certamente uma questão de distância física, mas de um relacionamento espiritual. O homem busca D’us chamando por Ele, aprendendo sobre Ele, Sua Sabedoria e Sua Vontade, e agindo de acordo com Seus Desejos. A Teshuvá acontece quando o homem vai de um nível espiritual a outro, procurando por D’us, pois é a busca contínua de D’us, dia após dia, e não apenas em ocasiões especiais como Rosh Hashaná e Yom Kipur.
O arrependimento é um dos pilares da fé judaica. É a mais elevada expressão da capacidade do homem de exercer seu livre-arbítrio. É, com efeito, a manifestação da Centelha Divina no homem. Através da Teshuvá um homem torna-se senhor de seu próprio destino: pode romper com o passado e começar vida nova. Isto explica por que, antes de criar o mundo, D’us criou o conceito de Teshuvá. Pois o mundo físico é um lugar onde o tempo flui e onde há uma relação constante entre causa e efeito. Mas como o conceito de se arrepender antecede o mundo, precede também o tempo. E assim, através da Teshuvá, o indivíduo pode não apenas definir seu futuro, mas também mudar seu passado. Entretanto, para voltar no tempo e romper com o ciclo de causa e efeito provocado por um pecado, a pessoa deve atingir o mais alto nível de arrependimento, chamado de Tikun. Tal patamar é atingido quando os pecados cometidos no passado são transformados em extraordinária força espiritual por fazer o bem. Isto ocorre quando o remorso por erros do passado se converte em força poderosa que impele o homem a realizar muito mais do que faria, habitualmente, caso jamais tivesse pecado.
Para que aconteça um Tikun, a retificação íntegra do passado, não é suficiente reconhecer que erramos; é preciso ir além. É por isso que a Torá, quando define um pecado, indica como expiá-lo. Meramente reconhecer o erro, sem fazer algo a respeito, gera em nós sentimentos de culpa e baixa auto-estima. Isto leva à passividade e à depressão. Ensina o Baal Shem Tov, fundador do Movimento Chassídico e grande cabalista, que o pecado é como a picada da cobra. O verdadeiro perigo acontece quando o veneno se espalha pelo corpo – ou seja, quando após cometer o pecado a pessoa diz a si mesma: “Olhe o que você fez! Que coisa sem valor você é”. Segundo o Bal Shem Tov, tais sentimentos podem levar o indivíduo a abandonar a sua jornada espiritual. Pois, ensina o mestre chassídico, o que a “Má Inclinação” deseja não é o pecado em si, mas o sentimento de tristeza que invade o homem após incorrer em erro. Não há dúvida de que ao cometer um pecado, o ser humano deve reconhecer que cometeu um ato nocivo de grande insensatez. Mas os sentimentos de culpa que corroem a auto-estima não levam a nada de positivo. Depressão e inércia vão contra tudo que D’us, Fonte da Vida, representa. Não é de se estranhar que o Espírito de D’us não paira sobre um profeta que se encontre em depressão.
A Teshuvá é um dos mandamentos da Torá, é uma obrigação que recai sobre todos os judeus. Juntamente com a Tefilá, a oração, a Tzedacá e a prática de justiça social, constitui um dos atos que conseguem chegar a D’us e afastar decretos severos. É, também, um processo que beneficia o mundo todo, pois através deste a energia utilizada pelas forças negativas passa a alimentar as positivas. Fazendo uma analogia: a pessoa que pecou, mas retorna a D’us, pode ser comparada a um homem que não apenas abandona sua vida criminosa, mas passa a usar todo seu conhecimento e experiência para ajudar a polícia a combater o crime. Na linguagem da Cabalá, a Teshuvá é o processo através do qual o homem resgata as faíscas de santidade que haviam sido capturadas pelas forças do mal.
Baseado neste ensinamento, o Talmud afirma que o lugar ocupado por um homem que fez Teshuvá não pode ser tomado nem pelo mais justo dos homens. A razão é que o penitente tem à sua disposição não apenas as forças do bem de sua alma, mas também as negativas que outrora ele usara para pecar, ambas agora a serviço de D’us.
Dizem os textos místicos que, em certos momentos durante o ano, D’us inspira o homem para que retorne a Ele, principalmente no período entre Rosh Hashaná e Yom Kipur. Mas, ensinam os cabalistas, é o homem quem deve iniciar esse processo, buscando D’us através da oração, do estudo da Torá, e da prática da Tzedacá e das boas ações. No último Livro dos Profetas, D’us proclama: “Retornem a Mim e Eu retornarei a vocês”. O processo deve ser iniciado pelo homem. Isto trará D’us para mais próximo, ainda. De fato, esta jornada do homem em direção ao Eterno se inicia, em geral, quando percebe que D’us o chama, constantemente.
Está escrito no livro de Jó que”O Eterno está ansiando pela obra de Suas mãos”. A cada momento, a cada dia, D’us anseia por cada um de seus filhos. Assim sendo, a pergunta que cada um de nós deve fazer a si próprio – não apenas durante os Dez Dias de Arrependimento, que começam em Rosh Hashaná e terminam com o encerramento de Yom Kipur, mas a cada dia de sua vida, é esta: “Se D’us anseia por mim, que direito tenho eu de não O atender?”
De fato, é muito difícil permanecermos insensíveis e indiferentes quando percebemos que quem clama por nós não é nenhum outro, senão Ele, o Infinito, Criador dos Céus e da Terra, e de tudo que nela habita.
Bibliografia:
Rabbi Adin Steinsaltz, The Thirteen Petalled Rose, Basic Books
Rabbi Adin Steinsaltz e Josy Eisenberg, The Seven Lights, On the Major Jewish Festivals, Jason Aronson
Rabbi Dr. Jacob Immanuel Schochet “Deep Calling Unto Deep”: The Dynamics of Prayer and Teshuvah in the Perspective of Chassidism (Mystical Dimension, Vol. 2), Merkos L’Inyonei Chinuch
Rabbi Tzvi Freeman, Bringing Heaven down to Earth, Book Two, Class One Press